A arte que não se irrita com a política | por Marcos Vieira
Desde que os executivos da Odebrecht revelaram um esquema de propina que envolve políticos que estão no poder, inclusive ocupando ministérios, e o povo não voltou às ruas, a sensação é de que o Brasil entrou em um estado de prostração coletiva, entregando a indignação na mão de gente como Jair Bolsonaro, Luciano Huck e militantes de rede social.
Nem mesmo os artistas, que teriam a função de captar os sentimentos da geração, imprimindo em suas obras um retrato atual, estão interessados em se opor ou denunciar aquilo que o cidadão comum não tem capacidade de expressar, embora sinta na pele, no dia a dia, as consequências de um sistema corrupto que aniquila o dinheiro dos impostos.
Há nichos específicos, lógico, como é o caso da cultura hip hop, que desde sempre faz versos e canta a falta de segurança pública e o racismo, mas não se trata de algo representativo para a maioria da sociedade. Os campeões de audiência – sertanejos, funkeiros e cantores de axé – não têm o propósito de passar alguma mensagem com suas músicas, a não ser aquela que envolve sexo e relacionamentos amorosos, nessa ordem.
Resta ao rock o engajamento, a tentativa de produzir algo que represente a indignação, mas esse gênero não existe mais no mainstream. É música restrita para pequenos públicos, que até preferem assim. E as letras quase sempre falam de questões individuais, nada que possa provocar qualquer reflexão social ou um mínimo de comichão nos políticos.
Chega a ser irônico o fato de que na época da Ditadura, quando era proibido se expressar, muita gente arriscou a vida falando o que a maioria precisava ouvir. É sempre necessário comparar aquele tempo com agora porque é o que temos de pior e melhor na nossa história recente – um regime de exceção e uma vasta produção cultural (talvez a mais fértil até hoje). E tudo que o ditador menos deseja é ver artistas produzindo, porque eles costumavam ser imprevisíveis.
A quietude de hoje vem um pouco da estafa de todos em ver o quanto a política é indigna, mas também da incapacidade em se pensar coletivamente. A mania dos rótulos, a política do “nós contra eles”, surgidos a partir da eleição de 2014, também serviram para desqualificar discursos que antes eram ouvidos por todos. Quem se engajou no governo petista acabou “proibido” de criticar Michel Temer, pois passou a ser encarado como um petralha. Da mesma forma, um pouco antes, quem não concordava com Dilma Rousseff era chamado de coxinha, apoiador do PSDB, direita, etc. Não sobrou espaço para quem queria somente mostrar indignação com a classe política de um modo geral.
Essa divisão na classe artística também é reproduzida aqui em Anápolis. Os grupos não se falam, ou melhor, preferem se opor, embora produzam, ambos, “produtos” cuja função é sensibilizar o ser humano: quadros, músicas, livros, espetáculos, poesias, filmes, etc.
É óbvio que em qualquer setor existe a disputa pelo poder. Há um direito legítimo de quem assume de ditar as regras – dentro do bom senso e das leis – e de quem sai exercer a oposição. Mas esse tipo de disputa seria mais adequado se não tivéssemos mais nada para nos preocupar. Não é bem assim, basta olhar para Brasília.
A população precisa contar com a força criativa dos artistas para levantar a voz contra um cenário político nacional sombrio. Se chegamos ao ponto em que estamos hoje é porque quem esteve no poder – e os “dois lados” estiveram – não foi capaz de estancar a sangria dos cofres públicos.
Não podemos ser taxados no futuro como a geração que mais sofreu com os efeitos da corrupção e que menos fez para mudar o quadro. Não podemos olhar para aquilo que nossa cultura produziu e não identificar um traço de revolta em parte da obra. E também não podemos dizer que nada fizemos porque tínhamos questões paroquiais para tratar. Absorver rótulos políticos talvez seja a maior perda que um artista possa sofrer. A luta noutros tempos era, essencialmente, por liberdade de expressão. Hoje a temos. Portanto, devemos usá-la.