Uma criança que brincava de adulto

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IRON JUNQUEIRA

 

Todavez em que eu ia à Delegacia de Polícia recolher ocorrências para as notas do jornal, encontrava por lá um menininho de 2 a 3 anos de idade, vagando nos corredores da unidade prisional subindo nas celas e brincando com os presos.

Um dia indaguei ao delegado Genésio de Freitasque garoto era aquele, o que fazia ali, ao que a autoridade, em tom de deboche, me explicou:

— É seu. Mas em seguida justificoua chacota. Estamos esperando você inaugurar seu Lar da Criança para “dá-lo” a você. E mediante meu silêncio, achou de falar sério. Na página 32 verá o registro dele. Busquei a página indicada e achei a ocorrência do garoto:

“Dia tal à noite o carro da Polícia fazia ronda na 14 de Julho, quando notou um vagido de criança, procedente daInduspina”: comprida marquise, de telhas, que cobria a longa calçada que diuturnamente abrigava mendigo e gente pobre que se aportava a Anápolis.

Os policiais foram até o local andando entre pessoas deitadas, certamente com frio e com fome, quando ouviram a criança e a localizaram.

Deitado ao lado de um homem infeliz que, logo, se queixou, vendo o policial:

— Ô seu guarda, leva esse menino daqui! Não deixa ninguém dormir.

Foram verificar porque a criancinha chorava tanto, e constataram tratar-se de queimadura que o padrasto lhe procedia com a ponta de cigarro acesa no intento de fazê-lo calar! Diante do comprovado, os policiais levaram os dois para o xilindró, ainda com os berros da criança em dor, por conta dos sinais de pontas de cigarro no rostinho dela.

— Não percebe que, com pontas de cigarro no rosto, no bracinho, você nunca conseguirá silenciar a criança, seu imbecil? Gritou o policialao andrajoso, agora com o carro já em trânsito.

No registro que li, o homem detido em poder da criança era amasiado com a mãe do pirralho, um filho natural. Desses que algumas mulheres nem sabiam de quem conceberam. E que se juntara a esse que maltratava o menino. A mãe logo morrera (bebia muito) e o filho teve que ficar com o parceiro de rua. Na cadeia, dia seguinte, o homem disse ao delegado, quando recebera liberdade:

— O menino não é meu! Não é meu filho! Não tem pai nem mãe! Por isso não o levo comigo…

O Delegado o mandou embora, mantendo o garotinho no ambiente, aguardando, num relance de esperança, o término da minha construção, o Lar da Criança. Desconfiava que eu terminasse por resolver a questão.

Li aquele registro e disse ao delegado:

— Segunda-feira virei buscá-lo…

E copiei os dados do garoto: sem data de nascimento, sem idade definida, sem nome de pais, porém, unicamente, com o seu nome: Arnaldo Carlos de Castro…

No segundo dia daquela semana busquei o guri e o levei para o Lar. Juntei seu nome aos demais que não tinham referência nenhuma nos meus arquivos e que foram deixadas na porta da instituição — e levei essa lista de treze garotos ao Juiz Air Borges, depois que o doutor Deoclécio Campos, pediatra da casa, estudada a idade das crianças, e pedido ao magistrado que me desse o Termo de Tutela para que eu pudesse registrá-las. A todos eles dei a data de meu nascimento: 22/12, conforme a idade cronológica de cada um.

Arnaldinho, levado da breca,percorreu o jardim da sua infância feliz, brincando, correndo e, como os demais, crescendo.

Na sua adolescência aprontou algumas inesquecíveis: era o bam-bam-bam no cubo mágico. Foi pegando aquilo e acertando a coisa. Na escola bagunçava, mas recompensava as professoras com boas notas, jogava bola, não era dos melhores jogadores porque, no Brasil, todos são os “melhores”, os “Neymares de plantão”, contudo era o que mais alegrava. Dentre tantas estripulias, destacava-se por não brigar com ninguém, nem nos tapas nem nos gritos.

Foi crescendo e se tornando mais difícil, todavia, mais brincalhão e ousado. Um dia entrou na caminhoneta do Lar e saiu dirigindo-a sem carteira. Perguntei ao Paulo Sérgio quem o ensinou a dirigir, ao que o Paulo disse: “— Ninguémensina aos gatos os meandros do quarteirão. Esse rapaz aí já nasceu sabendo!”

Deu trabalho e alegria até que, um dia, adulto, conheceu uma mulher à qual se juntou maritalmente. E foi ser feliz com ela. Já quase não sabíamos notícia dele, quando recebi do Juiz João Barbosa das Neves um telefonema.

— “Como vai, meu caro poeta? Estou aqui liberando um rapaz que foi criado por você. Em nome da nossa amizade! Ele se chama Arnaldo. A esposa dele me trouxe uma carta na qual ele se diz filho do Lar Humberto de Campos. Sem um erro de português. Uma caligrafia perfeita, de forma, no melhor vernáculo. Vou libertá-lo também por mérito, especial, dele, e pela nossa amizade”.

— Obrigado, doutor, o senhor é quem manda.

Dia seguinte o Arnaldo e sua mulher, Carolina, foram me visitar.

— O doutor me mandou agradecer ao senhor. E dizer-lhe que se estou livre até hoje, é graças à sua pessoa.

E no “pá daqui pá de lá”, eles me contaram que ele — o Arnaldo — tinha sido preso já por seis vezes, tudo por conta de furtos e roubos pacíficos.

— Pacífico, como? Se um simples roubo é uma espécie de violência contra outrem? Indaguei ao que dona Carolina me explicou.

— Ele não escolhe hora, não se esconde, quer uma coisa, ele a pega na frente do dono e a leva e, por mais o dono o chame e reclama do ato infracional, ele simplesmente ignora as queixas e segue levando o objeto… Não corre, não briga, não responde. Se a vítima se sente ofendida e o enfrenta, não há problema. Apenas entrega de volta a televisão, o rádio, o toca-discos do carro, até o controle remoto do portão que ele presumissefosse do toca disco. Devolve numa boa e segue em frente. Quem o teme e não toma de volta o objeto, ele segue em frente, livre, leve e solto…

— E a polícia, nada faz?

— Sim. Disse Arnaldo. Às vezes nem “colhi” fruto nenhum do dia os “homens” chegam a mim e me pedem: “— Dá uma grana aí…” Eu dou o que tenho. Se nada “arrecadei” ainda, eles me encontram onde moro e eu lhes pago…

— Arnaldo, expliquei a ele — quando completar o sexto processo seu na mesa do Dr. João Barbosa das Neves, ele não o poupará mais da prisão. Ele o conduzirá direto para o presídio de Goiânia. Não adiantarão suas cartas bem escritas nem sua inteligência nem seu espírito pacífico, cara! Vai ser Cepaigo mesmo! Qual foi a última dele, Carolina? E ela contou-me:

— A família estava toda reunida na sala, logo após o almoço, assistindo o Brasil na Copa do Mundo, e ele entrou no meio daqueles familiares, desligou a televisão da tomada, colocou-a no ombro, diante do espanto de todos, e sem nada dizer ou explicar, carregou embora, enquanto o pessoal da casa o seguia, sem nada entender, até que alguém da família o indagou:

— Cara! Aonde você vai com essa TV?

— Pra minha casa. Respondeu ele. Disse a mulher, sempre ao seu lado impedindo-o de cometer essas loucuras.

— Mas, pra sua casa? Disse o dono do aparelho. Em pagamento de quê? Nem o proprietário do objeto estava entendendo aquela atitude aberta, livre, calma, sem agressão verbal, sem ameaça e até, sem arma e explicação:

— Tome dele! Disse-lhe eu à vítima, ordenou Carolina. Ele é pacato, simples, muito bom. Só rouba assim, na cara! Mas se o senhor tomar de volta a coisa roubada, ele nem diz nada.

Foi o que o homem fez sem admoestação nenhuma, senão era de ser Arnaldo o constrangido diante de todos. Pegou de volta a TV e saiu dizendo seguido da família:

— Cara engraçado sô… nem para o jogo da Seleção ele “deu bola”.

…………………………

Certa tarde ligaram-me de algum ponto da cidade nos contando que haviam feito várias perfurações de faca no Arnaldo.

Busquei-o e o levei para a Santa Casa, onde fiquei horas seguidas aconselhando-o. Mas debalde. Ele sabia tudo, e de tudo e de todos. Era capacitado, quando queria trabalhava bem. Mas não tinha — segundo os médicos — aquilo a que chamamos de “consciência”.

Mais algum tempo foi tirado da vida física, baleado por alguém que não sabia que se tratava de um ser diferente, como milhares no mundo que, se escutado, seria tão bom como uma pequena criança adulta.Este foi mais um fato real.

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