O caçador de pacas | Iron Junqueira

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Os caçadores conhecem modos estratégicos infindos que lhes facilitam abater suas presas; são donos de uma arte, da qual não conheço nada, graças a Deus; digo “graças a Deus” não com o intuito de censurar os intrépidos amantes desse esporte, simplesmente porque me sinto feliz por nunca haver ferido um animal, e essa felicidade pretendo conservá-la, mesmo porque nada tenho contra ninguém e, muito menos, contra meus irmãos menores”, conforme expressão de Francisco de Assis; a propósito, antes que alguém conceba uma conclusão precipitada, adianto que também não tenho a presunção de querer imitar o santo que acabei de mencionar; ele tem a sua personalidade sublime e ajeitada, e eu tenho a minha, que me coloca numa condição de espírito rastejante e imundo a caminho do crescimento moral, embora de queda em queda; mas estou feliz por isso, por ter a minha personalidade “sui generis” com os meus defeitos e tudo, pois o que eu sou, eu sou; e me orgulho de não ter imitado a ninguém; se um dia eu melhorar o meu espírito, foi graças ao meu esforço, aos meus sacrifícios, às minhas dores. Eu só gostaria de imitar um Alguém. Mas como é impossível imitá-lo, contento-me com meu progresso lento e natural, embora eu não goste de nada demorado. Bom, acho que conversei muito e acabei mudando de assunto. Retornemos a um fato ocorrido com um certo caçador, amigo meu; ele contou-me sua experiência que tentarei reproduzi-la; aviso-lhes no entanto que se eu não conseguir descrever aqui a técnica que ele usou para caçar paca, por favor, não estranhem, pois não conheço nem paca (nem cotia), quanto mais a arte de caçá-la.

Pois o caçador de quem lhes falo descobriu a trilha do tal animalzinho e pretendia cevar o local onde ele costumava ir comer; colocaria e espingarda apoiada numa forquilha e ataria a extremidade de uma linha finíssima numa espiga de milho, no local da ceva, e a outra extremidade no gatilho da arma, de modo que quando o animal bulisse na comida a espingarda dispararia, atingindo-o de cheio; não sei como isso pode acontecer, mas as pessoas que conhecem tais processos devem estar entendendo melhor que eu; pois sim… O caçador em referência seguia a trilha da paca e quando chegou ao lugar onde deixaria a ceva, pisou na linha da mesma armadilha que outro caçador tinha preparado primeiro que ele, e a espingarda alheia detonou furiosamente, atingindo-lhe as duas pernas.

E o meu amigo passou uma boa temporada no hospital, sofrendo… pacas.

Eu conheço outros acidentes acontecidos com caçadores. Relatei o mais simples por considera-lo menos deprimente. E agora eu fico a pensar: será que esses desastres acontecem por mera casualidade, ou será que uma força estranha os promove a fim de oferecer aos caçadores uma austera lição da Natureza, como se esta estivesse a avisar-lhes de que as dores que experimentam os animais abatidos não são menores que as sofridas por eles, os caçadores, nesses acidentes?

… Não sei se li ou se ouvi contar; em todo caso, fiquem sabendo que não sou o responsável nem o dono da seguinte narrativa…

Certo caçador profissional retornava de uma temporada de caça, e pelo caminho vangloriava-se de sua pontaria infalível; relatava aos companheiros o tiro certeiro com que abatera um macaquinho que saltitava nas grimpas mais altas de um árvore, e acrescentava, orgulhoso: — Acertei-o bem no coração. A prova está aqui. E mostrava o bichinho de peito estourado. E prosseguia viagem.

Penetrava as terras de sua propriedade quando um empregado seu, montado num cavalo, veio avisá-lo: — Senhor tenho más notícias… — Diga logo, homem! — Dois de seus filhos brincavam com uma de suas armas de caça, quando acidentalmente ela disparou… — E o que houve? — Alvejou o seu filhinho menor bem no coração… — Meu Deus! E esporou o cavalo no afã de alcançar logo o seu lar. Meses depois, o grande caçador não tinha mais uma arma, sequer, em casa — e nunca teve coragem de abater um só animal.

Eis o tipo de fato que não gosto de narrar. Se o fiz, foi apenas com o propósito de alertar aos meus amigos que gostam de abater animais; quem sabe um desses caçadores por aí, lendo estas humildes páginas, possa sentir que a dor desse pai que perdera o filhinho em condições tão trágicas, não foi menor que a dor da mãe do pequenino animal, que ele abateu… bem no coração.

Eu conheço um tipo de caça bem mais útil do que essa de abater animais; só que exige, dos caçadores, muito mais coragem, muito mais força; e vou lhes dizer: nem todo caçador tem a valentia e a bravura de enfrentar a caça que eu conheço; sabem que tipo de caça é esse? É a caça às próprias imperfeições da alma a proporção que o caçador vai encontrando os tigres, sucuris, jacarés e outras feras na selvagem floresta do seu “eu”, ele — bang! Vai eliminando esses monstros terríveis que o tornam tão frio e sanguinário quanto os leões que ele encontra nas selvas da natureza.

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