Análise de cera de ouvido detecta câncer, revela pesquisa da UFG
Artigo que relata descoberta científica inovadora foi publicado no Scientific Reports Nature, veículo de comunicação dos mesmos editores da revista Nature
Por Versanna Carvalho
A cera de ouvido é um fluído biológico com a função de proteger os órgãos do sistema auditivo. Apesar da missão nobre, o material produzido pelas glândulas apócrinas costuma ser menosprezado pelas pessoas. Um estudo realizado no Laboratório de Métodos de Extração e Separação (Lames), ligado ao Instituto de Química (IQ) da Universidade Federal de Goiás (UFG), pode dar à secreção, também chamada de cerume, um status mais nobre. A pesquisa concluiu que o exame clínico da cera de ouvido pode levar à detecção de doenças como câncer em diferentes estágios.
Foram analisadas amostras de 50 indivíduos saudáveis e 52 com câncer Fotos: Natália Cruz
O grupo de cientistas envolvido na pesquisa ressalta que a grande inovação do trabalho está no fato de descobrir que a cera de ouvido contém o histórico do metabolismo de seres humanos que pode dizer se o indivíduo está doente ou saudável. Os detalhes do estudo estão no artigo científico Cerumenogram: a new frontier in cancer diagnosis in humans, publicado no Scientific Reports Nature, veículo de comunicação dos mesmos editores da revista Nature, de elevado fator de impacto na comunidade científica mundial.
A equipe de pesquisadores do Lames, liderada por Nelson Roberto Antoniosi Filho, tem a tradição de trabalhar com resíduos e rejeitos que geralmente não são valorizados. Já foram feitos estudos bem sucedidos com borra de café, sobras da indústria alimentícia, sobras da indústrias têxtil e automobilística, dentre outros. Houve o entendimento de que a cera de ouvido se enquadra nesse perfil por não ser muito utilizada do ponto de vista bioquímico.
O professor Antoniosi teve a ideia de investigar a cera de ouvida há mais de 20 anos, mas não conseguiu levar adiante devido à falta de tecnologia necessária. O cerume não foi uma escolha aleatória. “Por ser uma secreção, o cerume conta a história do metabolismo. Como o câncer é um processo metabólico um pouco diferenciado daquele que ocorre em células saudáveis, talvez haja a produção de substâncias diferentes das de um organismo saudável. Também pode ocorrer o aumento, redução ou até o desaparecimento dessas substâncias, que podem ser eliminadas na urina, no sangue, no suor, saliva ou no hálito, mas como esses meios já foram explorados por outros pesquisadores para diferentes situações, optou-se pela cera de ouvido”, esclarece o cientista.
Para cientistas, o cerumenograma deveria ser um exame de rotina por ser não invasivo, rápido, de baixo custo e alta precisão
Pouco invasivo e rápido
O exame é feito a partir da coleta da cera de ouvido no laboratório com uma cureta. A amostra fica armazenada em um recipiente, que a isola do meio exterior, e é mantida a menos 20 graus Celsius (- 20⁰ C) até se fazer a análise. Se o exame for feito imediatamente não há a necessidade desta refrigeração. Na sequência, o material colocado em um frasco, que é selado e colocado em um compartimento sob aquecimento.
O aquecimento faz com que os compostos voláteis da cera de ouvido passem para a fase de vapor a qual é recolhida depois por uma seringa e introduzida dentro do equipamento (cromatógrafo a gás), no qual as substâncias são separadas e chegam a um outro aparelho (espectrômetro de massas), que revela quais são as substâncias presentes no material. É possível obter um perfil das substâncias presentes em indivíduos que têm câncer e em indivíduos que são sadios.
“Nós observamos que esses perfis são distintos e com base nessas diferenças conseguimos montar um banco de dados e dizer se uma pessoa está ou não com câncer, inclusive quando se encontram em estágios iniciais. O que é importante, já que há maiores chances de cura quando a doença é diagnosticada no começo”, expõe Nelson Antoniosi.
Durante a realização da pesquisa, foram analisadas amostras de 50 indivíduos saudáveis e 52 com câncer, sendo 21 carcinomas, 4 sarcomas acompanhados de carcinomas, 10 leucemias, 11 linfomas, 3 mielomas com leucemia e 3 tumores do sistema nervoso central acompanhados de carcinomas.
O processo todo permite que em cinco horas seja verificado se o paciente tem ou não câncer. A análise pode ser feita em até sete dias a partir da data da coleta. “É bastante vantajoso, pois além de não ser invasivo, praticamente todas as universidades brasileiras possuem a tecnologia adequada e a instrumentação necessária para se fazer esse tipo de análise”, pontua.
Para o professor, a cera de ouvido tem se mostrado ser o melhor meio para fazer o diagnóstico de câncer por ser um material que contém, em uma pequena quantidade de amostra, uma elevada concentração de substâncias de interesse. “A análise do cerume consegue identificar 158 substâncias metabólicas. Dessas, 27 discriminam a ocorrência de câncer”.
Os resultados chamam a atenção da comunidade científica para a continuidade dos estudos. Em Goiás, o Hospital Araujo Jorge deverá firmar parceria com a UFG para a ampliação dos estudos. Em São Paulo, por solicitação do médico Luiz Juliano Neto, o hospital A.C.Camargo, referência internacional no tratamento e na pesquisa do câncer, também deseja firmar parceria em pesquisa com a UFG. Uma das maiores autoridades mundiais em câncer de cabeça e pescoço, o oncologista Luiz Paulo Kowalski, também do A.C.Camargo, demonstrou grande interesse em contribuir com as pesquisas, por meio da coleta de material e validação dos resultados em pacientes já diagnosticados.
Financiamento
O Laboratório de Métodos de Extração e Separação (Lames) é financiado por um conjunto de instituições de incentivo à pesquisa tais como Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Agência Nacional do Petróleo (ANP), Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), Fundação de Apoio à Pesquisa da UFG (Funape) e Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC).
Ao todo são R$ 46 milhões investidos por agências ligadas aos governos federal e estadual. “Nós ainda atendemos a empresas farmacêuticas e da área de combustíveis. O Lames tem se tornado um laboratório autossuficiente do ponto de vista financeiro. Essa pesquisa em especial faz parte de um projeto do CNPq, que concede a minha bolsa de pesquisador, e de um projeto da Capes que concedeu bolsas a pesquisadores e pós-graduandos”, detalha.
Time UFG
O artigo publicado no Scientific Reports Nature tem como primeiro autor o doutorando do Lames, João Marcos Gonçalves Barbosa. O grupo é composto por mais oito membros como Naiara Zedes Pereira (Lames/IQ/UFG), Lurian Caetano David (Lames/IQ/UFG), Camilla Gabriela de Oliveira (Hospital das Clínicas – HC/UFG), Marina Ferraz Gontijo Soares (HC/UFG), Melissa Ameloti Gomes Avelino (HC/UFG), Anselmo Elcana de Oliveira (IQ/UFG), Engy Shokry (Lames/IQ/UFG) e Nelson Roberto Antoniosi Filho (Lames/IQ/UFG). A farmacêutica Engy Shokry é a única que atualmente está fora da UFG, fazendo pesquisa fora do País.
O texto do artigo científico destaca que o câncer é a doença mais letal do mundo e que o desenvolvimento de novas formas de diagnóstico pode ajudar a reduzir essa mortalidade e elevar as chances de cura. Por isso a importância de se utilizar a cera de ouvido como uma nova biomatriz. Amostras de cerume foram coletadas de pacientes com câncer (grupo de câncer) e sem câncer (grupo de controle) e analisadas com a utilização de cromatógrafo a gás acoplado a espectrômetro de massas.
A indicação dos pesquisadores é de que o cerumenograma, nome dado à análise do cerume, venha a ser um exame rotineiro empregado no diagnóstico do câncer por ser não invasivo, rápido, de baixo custo e alta precisão.
Fonte: Secom UFG