Anápolis: 116 anos em um minuto

Publicado: 07.08.2023

A cidade pode ser entendida como um organismo vivo sujeito a transformações, conflitos de poder, movimentos e tensões que ocorrem em determinado espaço geográfico e, desse modo, também está sujeita ao desgaste. O historiador Lewis Mumford (2001) apontava que ela abriga, em sua estrutura, uma complexa rede de articulações culturais que modificam a mente do ser humano, reorganizam as noções de tempo e espaço e configuram a imagem de uma entidade viva que testemunha o legado histórico. Neste último, inclusive, é possível observar a dimensão cultural do urbano relacionado ao conjunto de sentidos partilhados no meio social, em que a cidade e sua história são construídas por várias mãos e tecidas por diversos interesses.

Dessa forma, por meio de um breve relato acerca de Anápolis, Goiás, nos cabe fazer a distinção entre espaço e lugar, conceitos que, de certa forma, se apresentam como obviedades. O primeiro é entendido como qualquer área ou sítio, e o segundo possui uma dimensão de significados e identidade, ou seja, a existência do espaço é material, mensurável, por existir sem o lugar, enquanto este inexiste sem aquele.

No aniversário de 116 anos de Anápolis, falaremos um pouco desse espaço no meio do centro-oeste goiano, dotada de uma posição geográfica privilegiada, por onde passa (e se passaram) desde tropas e boiadas de tropeiros até viajantes, sírios, libaneses, turcos, japoneses, norte-americanos, ingleses. Em uma cidade cosmopolita por natureza, também se verifica a presença de um dito progresso transformador atrelado à ideia de modernidade, em que o lema “Viva a Manchester goiana!” deu lugar à “gente anapolina”.

Sua cronologia histórica, baseada em Chiarotti (2010), é representada pela passagem de fazenda ao Povoado de Santana das Antas (1819-1873); à Freguesia de Santana das Antas (1873-1887); à Vila de Santana das Antas (1887-1907); e, por fim, à cidade de Anápolis (1907). Esse contexto é marcado por fluxos e trocas que, desde sempre, fizeram parte de suas paisagens e transformações urbanas como intrínseco dos municípios. Aqui, torna-se interessante olhar uma das primeiras imagens de Anápolis e visualizar sua metamorfose ambulante, como já dizia Raul Seixas, por possuir uma pré-disposição a mudanças.

 

Figura 1: Praça Sant’Ana em 1888 – à direita, há a Capela Sant’Ana.

Fonte: ALVEZ, 2013, p. 71.

 

Na imagem (Figura 1), é possível imaginar o começo da cidade: uma capela e seus devotos; as casas de taipa de pilão com aberturas frontais para as ruas de pura terra; e a paisagem deserta, ainda pouco habitada, com um rego de água e vizinhos que tinham o dom de saber sobre a vida de todos. Ousamos fantasiar uma visão típica do início da aglomeração anapolina, em um cenário ainda modesto em vista à conjuntura atual.

No início, havia a mula que empacava e não andava; a santa, que queria ficar por essas freguesias; e a Dona Ana, que entende a mensagem e manda edificar uma capela – todo anapolino de respeito conhece a história, inclusive. Não obstante a construção de um lugar requer mais do um mito, são necessários processos históricos e materiais que operam ao longo do tempo. Para tanto, apoiamo-nos nos dizeres da Profa. Dra. do Programa de Pós-graduação em Territórios e Expressões Culturais no Cerrado, da Universidade Estadual de Goiás (TECCER/UEG), Janes Socorro Luz (2009), que nos apresenta e caracteriza etapas do processo histórico da formação de Anápolis. O primeiro período se refere ao final do século XIX e às três primeiras décadas do século XX (1870-1935); o segundo, à chegada da ferrovia (1935-1960); e o terceiro ocorre a partir de 1960, cujo marco foi a construção de Brasília, até os dias atuais.

Sendo assim, podemos passar rapidamente por imagens que transmitam a proposta de cada período – obviamente, seria utopia considerar figuras para definir anos de evolução, mas, de maneira breve e para melhor exemplificar o crescimento de Anápolis, algumas fotografias podem dizer mais do que mil palavras. Antes da construção da almejada Estrada de Ferro Goiás (EFG) em 1935, a cidade era tipicamente interiorana. Possuía um caráter tradicional em suas edificações e, em sua paisagem, prevaleciam características homogêneas do período, com modos de vida pacatos.

 

Figura 2: Rua 15 de Dezembro na década de 1920.

Fonte: Flickr do Museu Histórico “Alderico Borges de Carvalho”.

 

Na figura 2, ilustram-se poucas casas, cujo estilo de vida é representado pelos varais de galhos de madeira improvisados que, provavelmente, constituíam a vitrine das casas comerciais. Os animais estavam em seus estacionamentos em frente às edificações, e as ruas ainda eram de terra. Ao fundo, a paisagem pouco habitada transmite o sertão goiano ainda pouco explorado e conhecido, com poucos resquícios nos atualmente – um deles é o saudável Museu Histórico Alderico Borges de Carvalho (Figura 3), que abriga a maioria dos acervos de variadas pesquisas e é o símbolo vivo de uma paisagem e das histórias que existiram na cidade.

 

Figura 3: Museu Histórico “Alderico Borges de Carvalho”, na região central da cidade.

Fonte: Autores, 2022.

 

No segundo período (1935-1960), aconteceram grandes transformações na cidade, sobretudo após a ferrovia, visto que Anápolis ansiava por uma imagem idealmente moderna. Os edifícios existentes se alteraram de maneira gradativa, sobretudo por meio de suas fachadas que, agora, deveriam aludir a estilos mais modernos – ora remetiam à arquitetura art déco difundida por Goiânia (1933), ora ao ecletismo. Todas as pretensões visavam romper com o que levava ao atraso, as tradições, o que corresponde ao famoso “tudo que é sólido se desmancha no ar” de Berman.

 

Figura 4: Rua Barão do Rio Branco na década de 1950.

Fonte: Flickr do Museu Histórico “Alderico Borges de Carvalho”

 

Por fim, após a construção e a entrega da almejada cidade moderna – a capital do país, Brasília, em 1960 –, Anápolis sofreu novamente com o boom de desenvolvimento e mudanças, onde surgiram alguns exemplares de caráter modernista na paisagem. O ideário da nova capital reformulou, mais uma vez, a sociedade anapolina e seus modos de vida. Vale ressaltar a importância da cidade para o “sertão goiano”, por ter sido local de fluxos e trocas.

 

Figura 5: Vista da Praça Bom Jesus para a esquina da Rua Barão do Rio Branco na Década de 1970.

Fonte: Flickr do Museu Histórico “Alderico Borges de Carvalho”

 

Em todo o trajeto histórico da cidade, a conduta natural da sociedade em se reinventar conforme os discursos de modernização nos chama a atenção. A cada período, era necessária uma mudança para romper com o passado; mas, o que dizer dessa identidade moderna nos dias de hoje? Em 116 anos de cidade, ela possui apenas 16 patrimônios culturais tombados, dos quais 12 são edifícios, três, bens naturais, e há apenas um bem imaterial. Dessa paisagem histórica, ainda existem muitos vestígios, mas pouco conhecidos e cada vez mais deteriorados.

O que esperar dos próximos aniversários? Provavelmente, outras mudanças em sua paisagem urbana em busca do progresso. Aliás, o que falta para a população entender a relevância em preservar as marcas do passado? Faltam pertencimento, conhecimento, desejo de ser anapolino e, ao olharmos as fotografias antigas de Anápolis, percebemos um passado rico de importância histórica, memórias e discursos. Porém, ao andarmos pela cidade, vemos pouco dessa cronologia.

Não ensejamos é incutir que Anápolis tombe todos os edifícios históricos e, tampouco, crie empecilhos ao desenvolvimento. O objetivo é simplesmente reacender um olhar cauteloso sobre o passado para construirmos um futuro com base na identidade, algo essencial ao nosso relacionamento com o meio em que vivemos. Para ter pertencimento, é necessária essa identificação, ou seja, aceitar e honrar o passado para o presente e o futuro serem (re)ordenados de fato.

 

Autores:

Jovanir J. L. FilhoArquiteto Urbanista, Especialista em Políticas Públicas e Dinâmicas Territoriais, Mestre em Ciências Sociais e Humanidades (PPG-TECCER/UEG).

Lara Ferreira AmaralArquiteta e Urbanista, Mestre em Ciências Sociais e Humanidades (PPG-TECCER/UEG).

Jean Carlos Vieira SantosProfessor e Pesquisador do Programa de Mestrado Territórios e Expressões Culturais no Cerrado (PPG-TECCER/UEG).

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *